sábado, 29 de fevereiro de 2020

Fissuras


(Imagem: Salvador Dalí)

A cidade era de pouca chuva, mas quando isso acontecia vinham as trovoados, os relâmpagos e os raios.
Eram muitos raios que teciam teias de aranhas douradas no céu escuro.

Os raios caíam mais de uma vez no mesmo lugar: sobre minha casa e minha cabeça.
Foram tantas as ocorrências que, certa vez, olhando-me no espelho, percebi que a minha alma apresentava discretas fissuras.
Com o passar dos anos, as fissuras evoluíram e aos poucos se transformaram em fendas profundas. Profundas. Cada vez mais profundas.
Ocorreu-me não dar importância ao episódio e por muitos anos recusei-me a conferir o estado da minha alma.

Numa noite de São João em que fui atingida por inúmeros desses raios, não pude mais ignorar o meu destino.
Diante do espelho, ainda pude ver os cacos da minha alma no exato instante em que desmoronava num grito lancinante e repousava inerte sobre o assoalho. 
Sem saber como recompô-la, desde então eu sou apenas um corpo onde os sonhos não perduram.
Que não envelhece e não mais sente dor.

Inês Mota

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quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Lamento ou sobre a loucura que não consegui organizar ou como não escrever um poema ou...ou...ou...ou

imagem:Jean-Michel Basquiat


Achei por aí uns versos meus que não ousei escrever.
O poema repousava agora em soberbo coxim com o epíteto: exercício poético.

Ele não me viu.

Mãe desnaturada sou eu. 
Não o pari, tampouco o adotei. 
Nem quis saber quem o engendrou e o firmou.

Da minha coletânea tão vasta - tenuíssima poeira dispersa - raros verbos se saturam e se precipitam.
Depois, sucumbem ante meu lápis e maculam meu papel de pão.

Mas só quando chove ou faz lua cheia.

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sábado, 8 de fevereiro de 2020

Abdução

Imagem: Papel de parede Magnathorax - O Segredo do Triângulo das Bermudas

Quando Joãozinho galgou o pé de feijão transgênico deparou-se com Gigante, o anão, conversando com Ave, a centopeia de trilhões de pares de pernas. Os dois brincavam em torno de uma casa decorada com deliciosas iguarias que iam saboreando enquanto conversavam.

Ave exibia uma meia diferente em cada pé e se divertia com um chocalho repleto de objeto coloridos, enquanto Gigante enchia de bugigangas a enorme carroceria do seu caminhão.

Foi assim que Joãozinho entendeu o intrigante mistério das coisas que sumiam misteriosamente de sua casa: além das guloseimas, como potes de Nutella, sorvete de flocos, chocolates, castanhas, brigadeiros, trufas e fatias bolo de aniversário, encontrara tigelas sem tampa, tampas de tigelas, tarraxas de brincos e brincos solitários. Dezenas de agulhas de coser, carretéis de linha, rabicós, tampas de canetas e canetas sem tampas. Havia pilhas de papeizinhos com números de telefones importantes, além de pentes e escovas, grosas e mais grosas de grampos de cabelo, inúmeros pés de meias descasados e grande quantidade de carregadores de celular.

Urgia voltar pra casa e cerrar portas e janelas. 

Em poucos minutos um curioso quadrante se abriria novamente e mais uma leva de coisas iria para o espaço.

Inês Mota

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