sexta-feira, 10 de junho de 2016

A Mesma Praça



Deixei a Valentina na escola e resolvi descer pela Praça Afonso Pena. Sim, aquela mesma que se converte numa linda piscina de águas marrons e sujas quando chove muito aqui na Tijuca. Mas que, quando é praça, é uma boa praça, sim.

Claro que me dirigi diretinho para aos equipamentos de ginástica da terceira idade e, brinquei com as maquininhas por uns quarenta minutos, até que um grupo de pessoas mais adiante me chamou à atenção junto ao monumento do Tim Maia.
Corri pra lá. Havia uns atores professores, que davam aulas de teatro à pessoas da 'melhoridade'. (As aspas decorrem da minha incerteza quanto a isso) 
Fiquei curiosa. Sentei, observando tudo; como eles atuavam propositalmente, de forma caricatural, carregada, exagerada belamente na 'cor'.

Durante uma hora, mais ou menos, me diverti, com as gentes que aos poucos chegavam e, captei e compactuei com aquela energia gostosa que se manifestava bem na minha frente e ali, se fazia visível, contagiante e colorida.
Cantei com eles a música que servia de fundo para a representação. Cantei alto, com muita vontade, aquela canção da minha adolescência, lembrando do meu pai e sorrindo de muita saudade: "Esse cabeludo por acaso é cantor? Desliga esse rádio, menina e, crie juízo. Isso não é música de futuro".

Quando chega o fim dos trabalhos, um senhorzinho de barbas brancas e longos cabelos me carrega pra roda e, rodamos, cantando, sorrindo e ouvindo as orientações dos que repassavam as lições, pedindo para que atentassem às deixas de cada um.
Vez ou outra, os meus vizinhos da esquerda ou da direita, me interpelavam, atrapalhando as explicações e aí, ouvíamos alguns 'psiu!', suaves repreensões.
-Ah, menina, então você é de Natal.... só podia. Percebi pelo sotaque...Linda cidade!!!
-Adorei. Ficamos em Ponta Negra e fizemos passeio de bugue, com emoção, hahahaha.
-Praias linda! Aquilo lá é o paraíso - na terra. Que é que estás a fazer aqui? Se eu pudesse eu morava naquele céu...
Aí começa a chamada.
-Fulano...!
-Presente!
-Sicrano!
-Presente!
-Inês!
-Faltou. A Inês é morta! heheheheh
-Como é seu nome mesmo?
-Inês Mota!
-Gente, a Inês é viva, hahahaha
-Viva, viva a Inês viva!
-Quer fazer parte do grupo? Toda quinta, aqui, às nove em ponto.
-Ah, não sei.... vou ficar olhando...tenho trauma. Nunca soube representar...
-Não precisa. Basta simular um bocadinho. Só um bocadinho, entendeu? hahaha.
-Como o Fernando Pessoa. "O poeta é um fingidor..."
E tome música, violão, gente cantando, eu cantando a música do cabeludo que pai não gostava. https://youtu.be/vZ8sw_lH9ms

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quinta-feira, 9 de junho de 2016

Kurosawua ou a angústia da influência

Imagem: "Ícaro e Dédalo", por Charles Paul Landon
Eram dias de mudança.
A casa, como em toda mudança, apinhada de caixas e móveis, bichos e gentes. Um caos que não se sabia por onde por ordem.


Da janela, Agnes assiste aos inusitados voos das crianças que, do 20º andar do prédio em frente, despencam sorridentes em queda livre.
Embaixo, o sangue, o espanto, o desassossego, a dor, o carpido das mães.
Agnes, pensativa, lembra apenas dos rostos felizes dos meninos que não temiam voar.
Em frente à casa, multidão. Um formigueiro em burburinho.
Tumulto. Especulações.


Então fora isso.
Era o que se propalava na rua. Era do Ângelo, a culpa.
Ângelo de Agnes de seu Chico.

33 anos, manso, sorridente, estudioso. Desde pequeno gostava das engenharias. Lia revistas de eletrônica. Engendrava  rádios transmissores domésticos.
Agnes e Ângelo são abordados. Na própria casa.

Polícia. Polícia. Polícias verdes e marrons. Camuflados.
Ângelo ri com todos aqueles bonitos dentes e grandes feito pedras de dominós. Debocha.
É broma. Só pode ser.


O artefato era seguro. Fora feito há mais de 20 anos. "Eu era um menino".
O projeto, só compartilhado com alguns outros poucos diletantes das tecnologias, era audacioso. E perfeito. Nenhum acidente registrado durante os testes com o protótipo.
Quantos voaram. Quantos realizaram sonhos. Quanta liberdade furtiva em meio aos cerceamentos. 


Mas os sonhos, como sonhos que são, são esquecidos, passam como o tempo e os protótipos e os projetos perfeitos ficam para trás, na caixa dos esquecimentos.
Ângelo sabe agora que não está sonhando. As polícias viram exércitos. Dentro de casa, na rua. Infinitas. Infinitas como fractais.
Enquanto bolina a memória, Ângelo vê materializar-se o objeto elíptico, tão familiar, tão roto. Surgem os distintos botões de cores e dimensões variadas, como os planetas do Sistema solar.


Mas, como lembrar das combinações, o código secreto, acionar o equipamento - agora mortal-  e, desativar suas funções?
Debalde, ele luta para lembrar a sequência. Os dedos passam trêmulos pelo dispositivo. O tempo não perdoa. Deleta a memória. O tempo, o tempo é lugar comum, é clichê.
Gabriel... Quem sabe, ele lembra... Ele não lembra.
Antes de sair, Ângelo volta-se para Agnes. Olham-se.

Agnes, rebela-se. As polícias não são páreo para uma mãe.
Avança. Transpõe a porta, abraça Ângelo.
Tropeçam. Caem, levantam, abraçados.


Agnes acorda. Chora um choro de felicidade.
Fora só um sonho. Apenas um sonho.
E do sonho, restaram as perturbadoras lembranças. As lembranças e o artefato. Em suas mãos.
Persevera.

Há de descobrir o bendito código.
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