Tempos Modernos, de Charles Chaplin (1936)
“Não sois máquina, homem é que sois” (C.Chaplin) "A idéia deste breve comentário é apontar alguns aspectos do filme de Chaplin. Obviamente, não se estará com a pretensão de uma abordagem exaustiva de um filme tão denso, que se abre a infindáveis análises, dos mais variados pontos de vista. Embora tomado como mais um filme com a marca da comicidade de Chaplin, o que ele, em seu formato e roupagem, é, gostaríamos de tomar, entre as muitas existentes, outras dimensões de conteúdo trazidas pela película. Passemos a elas. Partimos da idéia de que tanto no filme como no momento histórico do cinema em que lê foi feito, Chaplin trata de forma crítica da questão do tecnicismo na sociedade moderna. O filme, de certa forma, reflete a própria experiência de Chaplin à época da filmagem. Recém saído do sucesso de seu filme anterior (“Luzes da cidade”) no qual enfrentou o ceticismo de que em pleno desenvolvimento do cinema falado, que muitos indicavam como a morte da forma anterior de se fazer cinema, Chaplin conseguiu mostrar que em termos da produção e recepção da experiência artística, a técnica de vê ser vista como um meio, que não deve obscurecer o conteúdo. O sucesso conseguido com o filme “Luzes da cidade”, garantia à proposta artística de Chaplin uma vitória sobre o ceticismo daqueles que indicavam a pura necessidade da nova técnica sobre a anterior no sentido de maior qualidade. Os arautos dos novos tempos tiveram de se contentar com a demonstração de Chaplin sobre as variadas formas de sensibilidade humana e suas possibilidades de transmissão. Com “Tempos modernos”, Chaplin já garantira a indicação de que, mesmo em meio ao cinema falado, e as novas subjetividades e sensibilidades por ele produzidas, o cinema mudo, poderia ainda ter seu espaço. Chaplin, inclusive, faz uma incorporação satírica da fala neste filme. Mais do que submeter o cinema mudo e sua estética ao formato do cinema falado, ele submete a fala a outras formas de linguagem. No filme, a fala aparece como grunhidos, às vezes sem sentido, às vezes de forma periférica e marginal. A cena em que Chaplin, instado a cantar, e sem as anotações da letra da música, que perdera, é obrigado a improvisar e “cria” uma letra sem sentido, mas que é bem aceita ao final, já que o central não estava, ali, na letra cantada, mas no sentido que ele compunha com dança, gestos, ritmos.
A “vitória” de “Luzes da cidade”, garantiu um bom espaço de ação à Chaplin no “Tempos modernos”. Se ele representava a luta de seu autor, na vida real, contra as imposições acríticas e ufanistas do tecnicismo, o que se representa no filme esta no mesmo universo de sentido. Isso será verbalizado no futuro no filme “O grande ditador” quando ele profere a máxima, que nos serve de epígrafe, contra o processo de maquinização do homem que o levava à insensibilidade na realização de seu ser humano. Sem nos prendermos diretamente a cada parte do filme, diríamos que o filme mostra as formas pelas quais, o homem na sociedade capitalista desenvolveu um fetiche sobre a técnica e seus resultados. O homem deve ser substituído pela máquina, quando não ele mesmo deve virar uma espécie de máquina. A rotinização e o esvaziamento das dimensões criativas e societárias do trabalho surgem, entre outras, como facetas imediatas deste tipo de experiência. Ela se espelha por todo o corpo social. O tecnicismo, a burocratização e a alienação são a tônica. No filme, o homem, trabalhador – e aqui vale a ressalva, pois o “doce vagabundo” de outrora entra, se submete, no mundo do trabalho -, percorre uma verdadeira odisséia no interior e no exterior da fábrica. A incessante tentativa de transformá-lo em uma máquina repetitiva, o acompanha por, praticamente, todas as cenas. Quando consegue escapar da fábrica, cai nas malhas da polícia e da medicalização. Fábrica, polícia, médicos, drogas, com este rede a lhe cercar, são poucos os poros que sobram a esse homem neste sistema da “jaula de ferro”.
Uma das indicações de possibilidades de questionamento apresentada por Chaplin, reside na união e no protesto dos trabalhadores. Isso lhe valeu, inclusive, a pecha de bolchevista nos Estados Unidos. Porém, há uma “deixa”crítica de Chaplin que não pode deixar de ser apontada. O protesto acaba sendo feito de forma mecânica, pelos operários-máquina, seguindo cegamente quem lhes levante a bandeira. Ele parece apontar que romper com aquele sistema era romper também com formas que, ainda que de reação a ele, haviam sido geradas em seu interior, trazendo sua estampa. Elas, então, deveriam enfrentar os limites por ele impostos, não ser apenas sua contra-face, mas ser-lhe o outro, para, aí sim, transcendê-lo. Mesmo na tentativa de superação por dentro feita pelo “amor” e pelo “sentimento”, apresenta seus limites. Para conseguir concretizar plenamente seu amor pela jovem – concretamente em termos de constituir família, ter um lar, bens materiais etc -, o trabalhador precisa, mesmo após ter “abandonado” aquele sistema, se “entregar” novamente a ele. Parece que a “realização” do ser ou se fará “por dentro”, ou não se fará.
Porém, Chaplin parece guardar a idéia de que a utopia, fundamental como constituidora de horizontes imagináveis - e, por isso mesmo, possíveis -, precisa ser mantida. A busca de um novo projeto, transcendendo ao “mundo das coisas vigentes”. Juntos, atrelados por um sentimento comum, o dois terminam por caminhar uma estrada em busca de um outro mundo possível, guiados pelo sol radiante. Embora de título “Tempos modernos”, creio que o filme tem muito a nos dizer nestes “Tempos pós-modernos”. Podemos pensar através dele todas as possibilidades que embora docilizadas e feitas de forma sutil, vão nos transformando ainda em seres-máquina, ainda que pretensamente multifuncionais. Chaplin antecipa toda uma relação entre o sistema de instituições e práticas que servem para controlar os trabalhadores. Hoje, entre as muitas coisas que se pode indicar, controla-se o tempo e os ritmos de quem esta “dentro” das empresas e joga-se a polícia contra os que estão de “fora”. Mesmo os setores considerados intelectualizados e qualificados foram submetidos ao ritmo frenético da produção, o conhecimento passou a ser quantificado, a conexão eletrônica transformou as casas em local de trabalho e longas jornadas, nas quais os “capatazes” são os próprios trabalhadores. A liberdade, da qual só se percebe a faceta da insegurança, tem gerado angústia, stress e depressão. Nunca se viu tanto uso de remédios anti-depressivos, transformando-nos na sociedade Prozac. As cadeias, ao redor do globo, incham de populações marginalizadas pela sociedade e pelo mundo do trabalho, e as leis de repressão se ampliam e enrijecem, frente ao enfraquecimento e flexibilização da legislação trabalhista, que gera um verdadeiro desamparo, jogando os trabalhadores em um mundo precário e instável. Enfim, deve-se tentar ver o filme “Tempos modernos” não como um mero retrato de um dado momento histórico. Antes, deve-se explorar, tomando-o pela raiz, as suas potencialidades de lançar luz sobre nosso presente".
Por: Marco Aurélio Santana professor de História da UNIRIO (Universidade do Rio de Janeiro)
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