Imagem. Fonte: Portal dos Mitos
Morri numa quinta-feira de agosto.
Para ser mais exata, às 11:00 horas do dia 24, tal como registrado no documento de óbito.
Consta das crenças populares que esse é o dia que o cão anda solto. Não saberia esclarecer entretanto a que espécie de cão se referem, o que também não faz a menor diferença.
Para ser mais exata, às 11:00 horas do dia 24, tal como registrado no documento de óbito.
Consta das crenças populares que esse é o dia que o cão anda solto. Não saberia esclarecer entretanto a que espécie de cão se referem, o que também não faz a menor diferença.
A princípio me abstenho de esmiuçar os detalhes do fatídico ocorrido visto que o que está em causa no ensejo não são as picuinhas dos ávidos perscrutadores da vida alheia – ou da morte alheia-, que não descansam até conseguirem encontrar uma explicação plausível, elucidativa – e justa – para a tragédia e, por fim, darem-se por satisfeitos.
Sabemos contudo que os abutres são mais ferozes quando o morto resolve dar cabo da própria vida (o que felizmente não é o meu caso) e cada um veste sua sinistra capa, empunha boné e lupa e se empenha na tarefa investigatória, não descansando antes da absoluta convicção do motivo que levou o pobre diabo a uma atitude tão drástica e avassaladora que deixa como legado um sofrimento eterno para a família. E por isso as elucubrações que não têm mais fim: "o que teria ocorrido? Sofreria o defunto de alguma doença grave escondida a sete chaves? Estava a dever grandes somas ao banco? Haveria por fim descoberto que viver é esquisito e desistido de buscar um sentido à existência? Teria enlouquecido de vez? Deixou alguma carta dando explicações?".
Quero antes de tudo, ressaltar que não sou uma ingrata, uma mal agradecida que não leva em conta a dor dos familiares e amigos, a gentileza, o amor e os gastos dispendidos com a despedida do mundo terreno. A minha indignação reside no fato de teimarem em me proporcionar um velório “digno de tão querida pessoa” (sic), transgredindo todas as minhas ordens expressas, ditas, escritas, propaladas e reiteradas aos cinco ventos aos membros da família, a amigos e inimigos, próximos e distantes.
Pelos Deuses! Quantas vezes deixei claro que abominava e dispensava aquela cerimônia lúgubre que imprime ao dia uma cara de noite, um céu cinzento de garoa fina. E aquele ar pesado, impregnando as ventas do mundo e a boca da noite com um cheiro de dor e desengano, lágrimas e ausência.
Carpideiras de plantão entoam um triste alarido misturado com o burburinho das vozes das rezadeiras e o choro pungente dos parentes inconsoláveis. As luzes bruxuleantes pendem das paredes e teto, velas de chamas amarelas e chorosas piscam pesadamente e pingam estalactites quentes ao lado do lustroso ataúde que lembra um enorme e – caro – pão doce. A fila das pessoas se acotovelando para apreciar mais de perto a cara do desencarnado, a desgraça dos parentes e a certificar-se se a dor expressa pela família condiz com tão suposta grande perda.
O cheiro de morte, de incenso, do chá, do café e biscoitos servidos aos visitantes. O odor das flores. Ah! As flores… Eu disse que não queria flores. Mas eles teimam em retirá-las de onde nunca deveriam ter saído para pateticamente recobrirem um corpo morto que elas não podem e nunca puderam perfumar. E há mais flores. Há grinaldas e mais grinaldas ornadas de fitas com dizeres pesarosos dispostas em círculos pelo salão. Pobres flores. Morrerão precocemente. Sem merecer.
Debalde minhas escaramuças – defunto não tem querer – segue noite adentro a cerimônia. A família, sofrida, aos farrapos, se reveza no doloroso espetáculo. Os visitantes escasseiam à certa altura. No silêncio, um galo canta ao longe. Ainda há galos anunciando o sol e que a vida continua para os que ficam. A madrugada avança lenta, prolongando o sofrimento dos que esperam o grand finale, a hora do merecido descanso — dos vivos, em dolorida paz, em suas casas, ciosos do dever cumprido - e do aconchego que resta ao morto ao colo da terra.
Mal clareia o dia, novo ajuntamento de gente. Terços. Ladainhas e choros, ora convulsivos, ora serenos e resignados. Hora da partida. Segue o cortejo, de carros, de gentes conhecidas e desconhecidas, de curiosos, que se dirigem à minha morada final. Uma breve visita à igreja para as bênçãos do padre, com mais rezas, abraços de conforto aos familiares, recomendações aos deuses, pedidos de misericórdia ao pai eterno, água benta, crucifixo, o cheiro de incenso, o cheiro da morte dormida.
Sabemos contudo que os abutres são mais ferozes quando o morto resolve dar cabo da própria vida (o que felizmente não é o meu caso) e cada um veste sua sinistra capa, empunha boné e lupa e se empenha na tarefa investigatória, não descansando antes da absoluta convicção do motivo que levou o pobre diabo a uma atitude tão drástica e avassaladora que deixa como legado um sofrimento eterno para a família. E por isso as elucubrações que não têm mais fim: "o que teria ocorrido? Sofreria o defunto de alguma doença grave escondida a sete chaves? Estava a dever grandes somas ao banco? Haveria por fim descoberto que viver é esquisito e desistido de buscar um sentido à existência? Teria enlouquecido de vez? Deixou alguma carta dando explicações?".
Quero antes de tudo, ressaltar que não sou uma ingrata, uma mal agradecida que não leva em conta a dor dos familiares e amigos, a gentileza, o amor e os gastos dispendidos com a despedida do mundo terreno. A minha indignação reside no fato de teimarem em me proporcionar um velório “digno de tão querida pessoa” (sic), transgredindo todas as minhas ordens expressas, ditas, escritas, propaladas e reiteradas aos cinco ventos aos membros da família, a amigos e inimigos, próximos e distantes.
Pelos Deuses! Quantas vezes deixei claro que abominava e dispensava aquela cerimônia lúgubre que imprime ao dia uma cara de noite, um céu cinzento de garoa fina. E aquele ar pesado, impregnando as ventas do mundo e a boca da noite com um cheiro de dor e desengano, lágrimas e ausência.
Carpideiras de plantão entoam um triste alarido misturado com o burburinho das vozes das rezadeiras e o choro pungente dos parentes inconsoláveis. As luzes bruxuleantes pendem das paredes e teto, velas de chamas amarelas e chorosas piscam pesadamente e pingam estalactites quentes ao lado do lustroso ataúde que lembra um enorme e – caro – pão doce. A fila das pessoas se acotovelando para apreciar mais de perto a cara do desencarnado, a desgraça dos parentes e a certificar-se se a dor expressa pela família condiz com tão suposta grande perda.
O cheiro de morte, de incenso, do chá, do café e biscoitos servidos aos visitantes. O odor das flores. Ah! As flores… Eu disse que não queria flores. Mas eles teimam em retirá-las de onde nunca deveriam ter saído para pateticamente recobrirem um corpo morto que elas não podem e nunca puderam perfumar. E há mais flores. Há grinaldas e mais grinaldas ornadas de fitas com dizeres pesarosos dispostas em círculos pelo salão. Pobres flores. Morrerão precocemente. Sem merecer.
Debalde minhas escaramuças – defunto não tem querer – segue noite adentro a cerimônia. A família, sofrida, aos farrapos, se reveza no doloroso espetáculo. Os visitantes escasseiam à certa altura. No silêncio, um galo canta ao longe. Ainda há galos anunciando o sol e que a vida continua para os que ficam. A madrugada avança lenta, prolongando o sofrimento dos que esperam o grand finale, a hora do merecido descanso — dos vivos, em dolorida paz, em suas casas, ciosos do dever cumprido - e do aconchego que resta ao morto ao colo da terra.
Mal clareia o dia, novo ajuntamento de gente. Terços. Ladainhas e choros, ora convulsivos, ora serenos e resignados. Hora da partida. Segue o cortejo, de carros, de gentes conhecidas e desconhecidas, de curiosos, que se dirigem à minha morada final. Uma breve visita à igreja para as bênçãos do padre, com mais rezas, abraços de conforto aos familiares, recomendações aos deuses, pedidos de misericórdia ao pai eterno, água benta, crucifixo, o cheiro de incenso, o cheiro da morte dormida.
Por fim, uma gaveta me acomoda. Uma, duas ou três pás de cal. Os funcionários da morte caçoam. Morreu de uma cocada… coitada. Não, não fora uma cocada que fizera mal, esclarece. Fora um coco que lhe caíra na cabeça. De grande altura. Não resistiu, a infeliz. Morte estúpida. Gargalham convulsivamente e se vão deixando na cripta abafada um bafo azedo de aguardente. Depois, só o escuro, o silêncio. Só eu e elas, as flores inocentes. O sono no escuro silencioso com cheiro de terra.
Pobres dos mortos que não têm vontades.
Pobres dos vivos. Não levo o óbolo para Caronte.
Pobres dos mortos que não têm vontades.
Pobres dos vivos. Não levo o óbolo para Caronte.
2 comentários:
Fermoso
Muchísimas gracias, Roque! Abrazos.
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