quinta-feira, 9 de junho de 2016

Kurosawua ou a angústia da influência

Imagem: "Ícaro e Dédalo", por Charles Paul Landon
Eram dias de mudança.
A casa, como em toda mudança, apinhada de caixas e móveis, bichos e gentes. Um caos que não se sabia por onde por ordem.


Da janela, Agnes assiste aos inusitados voos das crianças que, do 20º andar do prédio em frente, despencam sorridentes em queda livre.
Embaixo, o sangue, o espanto, o desassossego, a dor, o carpido das mães.
Agnes, pensativa, lembra apenas dos rostos felizes dos meninos que não temiam voar.
Em frente à casa, multidão. Um formigueiro em burburinho.
Tumulto. Especulações.


Então fora isso.
Era o que se propalava na rua. Era do Ângelo, a culpa.
Ângelo de Agnes de seu Chico.

33 anos, manso, sorridente, estudioso. Desde pequeno gostava das engenharias. Lia revistas de eletrônica. Engendrava  rádios transmissores domésticos.
Agnes e Ângelo são abordados. Na própria casa.

Polícia. Polícia. Polícias verdes e marrons. Camuflados.
Ângelo ri com todos aqueles bonitos dentes e grandes feito pedras de dominós. Debocha.
É broma. Só pode ser.


O artefato era seguro. Fora feito há mais de 20 anos. "Eu era um menino".
O projeto, só compartilhado com alguns outros poucos diletantes das tecnologias, era audacioso. E perfeito. Nenhum acidente registrado durante os testes com o protótipo.
Quantos voaram. Quantos realizaram sonhos. Quanta liberdade furtiva em meio aos cerceamentos. 


Mas os sonhos, como sonhos que são, são esquecidos, passam como o tempo e os protótipos e os projetos perfeitos ficam para trás, na caixa dos esquecimentos.
Ângelo sabe agora que não está sonhando. As polícias viram exércitos. Dentro de casa, na rua. Infinitas. Infinitas como fractais.
Enquanto bolina a memória, Ângelo vê materializar-se o objeto elíptico, tão familiar, tão roto. Surgem os distintos botões de cores e dimensões variadas, como os planetas do Sistema solar.


Mas, como lembrar das combinações, o código secreto, acionar o equipamento - agora mortal-  e, desativar suas funções?
Debalde, ele luta para lembrar a sequência. Os dedos passam trêmulos pelo dispositivo. O tempo não perdoa. Deleta a memória. O tempo, o tempo é lugar comum, é clichê.
Gabriel... Quem sabe, ele lembra... Ele não lembra.
Antes de sair, Ângelo volta-se para Agnes. Olham-se.

Agnes, rebela-se. As polícias não são páreo para uma mãe.
Avança. Transpõe a porta, abraça Ângelo.
Tropeçam. Caem, levantam, abraçados.


Agnes acorda. Chora um choro de felicidade.
Fora só um sonho. Apenas um sonho.
E do sonho, restaram as perturbadoras lembranças. As lembranças e o artefato. Em suas mãos.
Persevera.

Há de descobrir o bendito código.
Share/Save/Bookmark

Nenhum comentário: