Oulipo e a pesquisa sobre literatura potencial
Ana alencar e Ana Lúcia Moraes*
Raymond Queneau já era um escritor consagrado quando decidiu escrever os Cent mille milliards de poèmes. Na época, encontrou um amigo matemático, François Le Lionnais, com quem comentou, segundo conta o próprio Queneau, que estava um pouco assustado com o imenso desafio que os poemas representavam – para se ter uma idéia, tratava-se de um sistema que explorava as possibilidades de combinação de dez sonetos cortados em quatorze pedaços cuja completa realização somente se tornou possível com o desenvolvimento posterior da informática. Desse encontro entre Queneau, escritor interessado em pesquisas matemáticas, e Le Lionnais, matemático interessado em literatura, surgiu a proposta de fundar o OULIPO.
Durante a realização de um encontro em Cerisy, em torno da obra de Queneau, sete escritores com preocupações semelhantes reuniram-se, programando a formação desse grupo dentro do já existente Collège de Pataphysique. Em 1960, ocorre a primeira reunião do Oulipo - Ouvroir de Littérature Potentielle (Oficina de Literatura Potencial).
Durante vários anos o grupo permaneceu desconhecido do grande público, mas continuou agregando vários colaboradores. Contamos entre seus membros vivos ou mortos, franceses ou estrangeiros: Jean Queval, Raymond Queneau, Jean Lescure, Hervé Le Tellier, François Le Lionnais, Jacques Duchateau, Claude Berge, Jacques Bens, Albert-Marie Schmidt, Noël Arnaud, Latis, André Blavier, Marcel Bénabou, Jacques Jouet, Georges Perec, Jacques Roubaud, Paul Founel, Italo Calvino, Harry Mathews, Paul Braffort, Luc Etienne, Ross Chambers, Stanley Chapman e Michèle Métail.
A partir de 1965, uma série de livros e artigos dos autores oulipianos foi publicada, tornando a iniciativa do grupo extremamente famosa na França, onde tem muitos seguidores até hoje.
Tipos de textos oulipianos
Todo discurso implica, necessariamente, em restrições que ordenam sua legibilidade dentro de universos já existentes (a gramática, o vocabulário, a sociedade, a cultura....). Essas contraintes discursivas, que participam de uma necessidade conversacional, praticamente se opõem às contraintes scripturales, restrições que são fruto de uma escolha voluntária que um autor se impõe deliberadamente na produção de seus textos.
OULIPO, desfazendo a idéia de que a literatura é a arte do único e do inimitável, explora o potencial teórico, ao mesmo tempo em que obviamente poético ou criativo, de uma lógica da repetição e da imitação. Escrever é imitar, repetir, traduzir. Os autores oulipianos produzem quatro tipos de textos: textos que utilizam estruturas já existentes, textos produzidos a partir da aplicação de restrições (contraintes) inventadas por eles, exercícios de estilo (pastiches) e textos de literatura combinatória.
Os oulipianos recuperam algumas estruturas, regras ou restrições como o lipograma, o anagrama, o palíndromo ou o tautograma. Essa prática da escrita sob restrição (écriture à contraintes) que remonta à Antigüidade é reutilizada, por Georges Perec, por exemplo, para escrever um lipograma, intitulado “La Disparition”, no qual não se encontra a letra e.
Mas o exemplo mais famoso de texto escrito sob restrição produzido por um autor oulipiano é, sem dúvida, o romance La vie mode d’emploi, do mesmo Georges Perec, editado pela Hachette em 1978 (já traduzido em português e editado no Brasil pela Companhia das Letras). Perec usa uma série de restrições matemáticas e outras regras extremamente complexas para elaborar o romance que conta a vida dos habitantes de um edifício. O texto pode ser lido, sem que por isso seu sentido seja afetado, por qualquer leitor mesmo que este desconheça as regras que presidiram sua escrita.
O fato de Perec ter misturado algumas regras já existentes, pelo menos como regras matemáticas, com outras que ele inventou, só vem confirmar que muito embora os oulipianos prestem homenagem aos que eles chamam de seus “plagiadores por antecipação”, querem principalmente definir e inventar novas formas de utilização de estruturas e restrições.
Exercícios de Estilo, além de ser o título de um dos livros de Raymond Queneau, é igualmente o nome de uma prática textual oulipiana que questiona a máxima “o estilo é o homem”. A proposta é imitar estilos que se proliferam quase ao infinito, criando textos através de variações em torno de um tema simples.
A expressão “literatura combinatória” aparece em 1961, usada por François Le Lionnais, no seu posfácio ao Cent mille milliards de poèmes. Queneau, provavelmente o autor oulipiano que mais explorou esse tipo de exercício, produziu, além de poemas, algumas narrativas combinatórias. Seu texto Un conte à votre façon tornou-se o primeiro texto assistido por computador, garantindo a Queneau o lugar de precursor da literatura informatizada.
A maior parte das pesquisas do Oulipo têm sido, atualmente, continuadas por oulipianos que se dedicam à informática. Marcel Bénabou, Jacques Roubaud e Pierre Lusson definiram procedimentos algorítmicos para a criação de textos segundo certas “restrições” que foram em seguida informatizadas. Em 1981, Jacques Roubaud e Paul Braffort propuseram a criação de um novo grupo que viria a se consagrar unicamente à literatura e à informática, o ALAMO – Atelier de Littérature Assistée par la Mathématique et les Ordinateurs (Oficina de Literatura Assistida pela Matemática e pelos Computadores) que reuniu escritores, professores, lingüistas, pesquisadores de inteligência artificial e pedagogos. Tanto os resultados das pesquisas do Oulipo, quanto os das pesquisas do Alamo podem ser facilmente encontrados na Internet.
Embora não se tenha uma vasta bibliografia em português sobre os trabalhos do Oulipo, existem alguns livros de Georges Perec e Raymond Queneau editados no Brasil: QUENEAU, Raymond, Exercícios de Estilo, Imago, 1995 e Zazie no Metrô, Rocco, 1995; PEREC, Georges, A Vida Modo de Usar, Cia das Letras e W, ou a Memória da Infância, Cia das Letras. Também se encontram vários livros de Ítalo Calvino em português.
Para os que lêem em francês, os fascículos da Bibliothèque Oulipienne foram editados em 3 volumes pela editora Seghers em1990.
* ANA ALENCAR é professora de Teoria Literária na UFRJ e tradutora. ANA LÚCIA MORAES é pesquisadora e doutora em Literatura pela Université Stendhal – Grenoble III. Em dezembro editarão um número da Revista Terceira Margem, do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ, dedicado às oficinas de escrita criadas a partir das propostas do Oulipo.
Extraído da Revista Confraria - Arte e Literatura
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