Lamentos
São as sedutoras vozes da noite: também assim cantavam as Sereias...
Não fora de justiça, para com elas, atribuir-lhes o deliberado propósito de seduzir: elas bem sabiam que possuíam garras e nenhum seio fértil, e disso lamentavam-se em altas vozes - mas não tinham culpa de soarem tão belos os lamentos.
A Coleira
Livre e confiante cidadão da Terra, eis que está preso a uma corrente longa o bastante para lhe proporcionar a liberdade sobre todo o espaço terrestre; conquanto longa apenas de maneira a que não o solicite coisa alguma fora dos limites da Terra. É ao mesmo tempo livre e confiante cidadão do Céu, e eis que está preso a igual corrente celeste.
Quando pende muito para a Terra, estrangula-o a corrente celeste; quando pende muito para o Céu, estrangula-o a coleira terrestre...
Tem todavia todos os recursos, sente isso; sim, mas obstina-se em negar que tudo se dava a um erro inicial na fixação dos grilhões.
O pião
Um filósofo costumava circular onde brincavam crianças. E se via um menino que tinha um pião já ficava à espreita. Mal o pião começava a rodar, o filósofo o perseguia com a intenção de agarrá-lo. Não o preocupava que as crianças fizessem o maior barulho e tentassem impedi-lo de entrar na brincadeira; se ele pegava o pião enquanto este ainda irava, ficava feliz, mas só por um instante, depois atirava-o ao chão e ia embora. Na verdade, acreditava que o conhecimento de qualquer insignificância, por exemplo, o de um pião que girava, era suficiente ao conhecimento do geral. Por isso não se ocupava dos grandes problemas – era algo que lhe parecia antieconômico. Se a menor de todas as ninharias fosse realmente conhecida, então tudo estava conhecido; sendo assim só se ocupava do pião rodando. E sempre que se realizavam preparativos para fazer o pião girar, ele tinha esperança de que agora ia conseguir; e se o pião girava, a esperança se transformava em certeza enquanto corria até perder o fôlego atrás dele. Mas quando depois retinha na mão o estúpido pedaço de madeira, ele se sentia mal e a gritaria das crianças – que ele até então não havia escutado e agora de repente penetrava nos seus ouvidos – fugentava- o dali e ele cambaleava como um pião lançado com um golpe sem jeito da fieira.
O abutre
Era um abutre que me dava grandes bicadas nos pés. Tinha já dilacerado sapatos e meias e penetrava-me a carne. De vez em quando, inquieto, esvoaçava à minha volta e depois regressava à faina. Passava por ali um senhor que observou a cena por momentos e me perguntou depois como eu podia suportar o abutre.
- É que estou sem defesa - respondi. - Ele veio e atacou-me. Claro que tentei lutar, estrangulá-lo mesmo, mas é muito forte, um bicho destes! Ia até saltar-me à cara, por isso preferi sacrificar os pés. Como vê, estão quase despedaçados.
- Mas deixar-se torturar dessa maneira! - disse o senhor. - Basta um tiro e pronto!
- Acha que sim? - disse eu. - Quer o senhor disparar o tiro?
- Certamente - disse o senhor. - É só ir a casa buscar a espingarda. Consegue aguentar meia hora?
- Não sei lhe dizer. - respondi.
Mas sentindo uma dor pavorosa, acrescentei:
- De qualquer modo, vá, peço-lhe.
- Bem - disse o senhor. - Vou o mais depressa possível.
O abutre escutara tranquilamente a conversa, fitando-nos alternadamente. Vi então que ele percebera tudo. Elevou-se com um bater de asas e depois, empinando-se para tomar impulso, como um lançador de dardo, enfiou-me o bico pela boca até ao mais profundo do meu ser. Ao cair senti, com que alívio, que o abutre se engolfava impiedosamente nos abismos infinitos do meu sangue.
São as sedutoras vozes da noite: também assim cantavam as Sereias...
Não fora de justiça, para com elas, atribuir-lhes o deliberado propósito de seduzir: elas bem sabiam que possuíam garras e nenhum seio fértil, e disso lamentavam-se em altas vozes - mas não tinham culpa de soarem tão belos os lamentos.
A Coleira
Livre e confiante cidadão da Terra, eis que está preso a uma corrente longa o bastante para lhe proporcionar a liberdade sobre todo o espaço terrestre; conquanto longa apenas de maneira a que não o solicite coisa alguma fora dos limites da Terra. É ao mesmo tempo livre e confiante cidadão do Céu, e eis que está preso a igual corrente celeste.
Quando pende muito para a Terra, estrangula-o a corrente celeste; quando pende muito para o Céu, estrangula-o a coleira terrestre...
Tem todavia todos os recursos, sente isso; sim, mas obstina-se em negar que tudo se dava a um erro inicial na fixação dos grilhões.
O pião
Um filósofo costumava circular onde brincavam crianças. E se via um menino que tinha um pião já ficava à espreita. Mal o pião começava a rodar, o filósofo o perseguia com a intenção de agarrá-lo. Não o preocupava que as crianças fizessem o maior barulho e tentassem impedi-lo de entrar na brincadeira; se ele pegava o pião enquanto este ainda irava, ficava feliz, mas só por um instante, depois atirava-o ao chão e ia embora. Na verdade, acreditava que o conhecimento de qualquer insignificância, por exemplo, o de um pião que girava, era suficiente ao conhecimento do geral. Por isso não se ocupava dos grandes problemas – era algo que lhe parecia antieconômico. Se a menor de todas as ninharias fosse realmente conhecida, então tudo estava conhecido; sendo assim só se ocupava do pião rodando. E sempre que se realizavam preparativos para fazer o pião girar, ele tinha esperança de que agora ia conseguir; e se o pião girava, a esperança se transformava em certeza enquanto corria até perder o fôlego atrás dele. Mas quando depois retinha na mão o estúpido pedaço de madeira, ele se sentia mal e a gritaria das crianças – que ele até então não havia escutado e agora de repente penetrava nos seus ouvidos – fugentava- o dali e ele cambaleava como um pião lançado com um golpe sem jeito da fieira.
O abutre
Era um abutre que me dava grandes bicadas nos pés. Tinha já dilacerado sapatos e meias e penetrava-me a carne. De vez em quando, inquieto, esvoaçava à minha volta e depois regressava à faina. Passava por ali um senhor que observou a cena por momentos e me perguntou depois como eu podia suportar o abutre.
- É que estou sem defesa - respondi. - Ele veio e atacou-me. Claro que tentei lutar, estrangulá-lo mesmo, mas é muito forte, um bicho destes! Ia até saltar-me à cara, por isso preferi sacrificar os pés. Como vê, estão quase despedaçados.
- Mas deixar-se torturar dessa maneira! - disse o senhor. - Basta um tiro e pronto!
- Acha que sim? - disse eu. - Quer o senhor disparar o tiro?
- Certamente - disse o senhor. - É só ir a casa buscar a espingarda. Consegue aguentar meia hora?
- Não sei lhe dizer. - respondi.
Mas sentindo uma dor pavorosa, acrescentei:
- De qualquer modo, vá, peço-lhe.
- Bem - disse o senhor. - Vou o mais depressa possível.
O abutre escutara tranquilamente a conversa, fitando-nos alternadamente. Vi então que ele percebera tudo. Elevou-se com um bater de asas e depois, empinando-se para tomar impulso, como um lançador de dardo, enfiou-me o bico pela boca até ao mais profundo do meu ser. Ao cair senti, com que alívio, que o abutre se engolfava impiedosamente nos abismos infinitos do meu sangue.
5 comentários:
Oi Inês.
Requintado o post. O velho Franz, apesar da melancolia, é excelente.
Um beijo.
Tenho o desejo de levar Kafka aos palcos, mas ainda não me sinto preparado. É um tanto denso e complexo (e porque não, melancólico?). Lindo e perceptível, mas complexo. Bjs e ótima semana
satisfação em nos ver linkado no seu blog. vamos conhecer o objeto escuro e linkar. abz, Jucá
Sempre bom ler isso. Ainda mais porque eu tenho uma trupe que é muito fã de Kafka. Esse pessoal está em www.vidabarata.com Será um prazer receber sua visita lá!
Parabéns pelo blog e pelas ótimas escolhas dos trechos dos autores na lateral.
Um abraço,
Leo João
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